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A razão de as pétalas caírem inquietas, por William Teca

Tradução, poesia e pensamento

A vinculação entre poesia e pensamento, sobretudo um pensamento que se costuma chamar de pensamento originário, é uma das abordagens fundamentais da poesia no século XX. Não é à toa que boa parte do que foi feito nesses termos, durante esse período, diz respeito àquilo que se convenciona chamar de metalinguagem.

No final das contas, ainda que possa parecer a alguns uma mera maneira dileta de extremismo, toda poesia é metalinguagem, se não nessa acepção, especialmente porque desfruta do traço radical de ser linguagem e produtora de linguagem, o que, tendo em vista que o mundo só existe porque é linguagem, alça-a a um status primordial e, num sentido mais restrito, a um status arquetípico, ou seja, é pela palavra poética que se estabelece aquilo que é o fundamento da existência naquilo em que ela é essencial.

Esse raciocínio implica, ao contrário do que considera o senso comum, que a poesia e – nesse sentido a própria arte – assim como o pensamento, é o desdobrar de um princípio e está além de análises superficiais daquilo que consideramos gosto, ou seja, o gosto varia, porém a arte é sempre invariável, sobretudo porque está além do tempo considerado em sua positividade sucessiva.

É por essa razão que a poesia – e por conseguinte, a arte – consegue transpor épocas e fazer sentir e dar sentido, independentemente da vinculação temporal em que se manifesta. Em outras palavras, a poesia é sempre atual.

Compreender essa atualidade é compreender a cultura em seu cultivo e captar a ressonância geradora da fruição que vai além do sentir imediato ou cognitivo, para uma instância que aponta na direção de uma disposição afetiva fundamental.

Daí a importância de se ler os clássicos, porque eles são os geradores da ressonância, uma ressonância tão fundamental que é capaz de apresentar os critérios essenciais do que somos e de quem somos.

Ítalo Calvino, Harold Bloom e Ezra Pound – para ficar apenas em três nomes – falaram bastante a respeito, cada um à sua maneira, e todo poeta relevante (entenda-se aqui, por extensão: todo artista relevante) se preocupa em estabelecer algum tipo de diálogo com – por falta de uma palavra melhor: a tradição.

Pound frisa com todas as letras em seu consagrado ABC da Literatura a necessidade do estabelecimento de um Paideuma, constituído tanto por inclinação estilística pessoal, quanto por poetas que foram principalmente inventores e possuem alcance universal – para ele, uma das características de ser um inventor é justamente a universalidade.

É claro que há diversos níveis de dificuldade em se ler inúmeros poetas seminais: há sempre a necessidade de alcançar um nível de interpretação que seja satisfatório, que exige muito mais do que o conhecimento de um idioma e seu sentido imediato, principalmente quando se trata de poesia – que já foi a cereja do bolo da Literatura.

Mas, nos recentes últimos quinhentos anos, foi sobrepujada pela suposta retilineidade casual da prosa (ainda que todo e qualquer uso da linguagem implique o simbólico e necessariamente uma carga poética inerente, mesmo que indelével), assim a relação que qualquer um tem com a poesia é uma relação não só de interpretação, mas também de tradução: traduttore traditore.

E aqui chegamos ao objetivo deste texto

Card com poema da edição artesanal

Quando se trata de conhecer poetas cruciais para a Literatura Ocidental o acesso a tais autores está disponível em inúmeras traduções, boa parte delas bilingue, graças a um empenho e dedicação de muita gente que não só facilita esse acesso, mas também produz poesia de qualidade; porém, quando se trata de Poesia Oriental(e talvez até mesmo a prosa, que muitas vezes vem de segunda mão) a coisa fica um pouco complicada.

Na Poesia Japonesa – ainda que Bashô seja figurinha carimbada por estas plagas e diretamente responsável pelos inúmeros equívocos daqueles que cometem haikais na primeira hora do impulso poético, principalmente por sua suposta facilidade – essa complicação atinge níveis extremos.

Primeiro há evidentemente a língua e suas características formadoras, e em segundo lugar, a necessidade de uma baita capacidade de compreensão de sentidos e contextos. Não basta transportar uma coisa de um lugar ao outro, é preciso ser capaz de lidar com um tipo de pensamento temporalmente adverso no estabelecimento de sentidos e significações que mantenham a ressonância capaz de permitir a fruição artística e seu caráter originário, como se aquele poema estivesse sendo encarado pela primeira vez e produzisse o espanto que a poesia em si é capaz de guardar em suas entranhas e revelar somente ao leitor mais atento.

Por conta disso, o trabalho executado por Vladine Barros mereceria só pelo esforço um enorme reconhecimento de seu mérito, porém, ela vai além disso, a sutileza e preocupação com as filigranas da tradução impressionam até o mais mal humorado dos críticos. É realmente surpreendente a maneira como ela consegue, graças à união entre destreza técnica e sensibilidade, resolver os problemas cabeludos que esse tipo de trabalho exige. Uma edição que consegue transitar bem entre o rigor acadêmico que agradará e facilitará o trabalho de outros pesquisadores, e a fluidez que torna o texto acessível a quem só quer gozar o prazer da leitura, o fato de a edição ser bilingue e de os poemas serem traduzidos pela primeira vez é um destaque à parte.

Ao olhar o livro se tem a impressão de que estamos diante de só mais uma edição bonitinha, mas, essa primeira impressão é logo apagada, não se trata apenas de cuidado editorial, mas sim de conteúdo de verdade.

Além do casamento perfeito entre texto e ilustrações, quem gosta de uma boa nota de rodapé vai fazer a festa, principalmente porque a edição conta com um apêndice extremamente informativo e esclarecedor. Além de ser um trabalho de tradução, é um livro que carrega a mão leve e criativa dos editores e a dicção de alguém que sabe do que está falando.

Creio que me resta apenas reforçar as palavras da professora doutora Márcia Hitomi Namekata em sua introdução ao livro, é louvável que mais gente se interesse pelos Clássicos, pelos Clássicos da Poesia, pelos Clássicos da Poesia Japonesa, pois: “o sentimento humano é o mesmo, independentemente das coordenadas de tempo e de espaço”.

Segue o  baile!