Matéria escrita por Ana Luiza (Assum Azul)
Histórias em quadrinhos, traduções, cadernos de poesias, jogos eletrônicos, de cartas ou tabuleiro; ilustrações, livros de história fatídica sobre temas inesperados, lançamento de discos, clipes musicais, contos inéditos, guias, mangás. Uma breve exploração pelos sites de financiamento coletivo revela uma frota diversificada de projetos independentes. O que todos eles têm em comum é estarem ali numa busca promissora para fugir ao limbo artístico onde se abarrotam todas as criações desestimuladas pela falta de apoio financeiro. O que todos eles têm em comum é a esperança de um melhor destino às suas obras, sejam elas quais forem.
Não só de material artístico e cultural são compostos os sites de financiamento coletivo, mas este post é especial para os artistas e autores independentes. E também para aqueles que não se consideram artistas nem autores, por assim dizer, por não abraçarem completamente o desafio das produções artísticas e culturais – mas que têm trabalhos nessa área. Trabalhos e projetos que gostariam de concretizar, ainda que nunca tenham sido concebidos com a pretensão de serem divulgados, compartilhados e reconhecidos por muitas pessoas, principalmente por essa crença: não há dinheiro para bancá-los.
Por fim, é um post também para aqueles que gostariam de investir em artes e cultura de um modo geral, mas têm o bolso apertado. Para aqueles que querem investir em algo novo, desconhecido, em algum amigo próximo, em algum potencial não explorado pelos meios “oficiais” de produção cultural. Para os que querem fazer uma curadoria do tipo de conteúdo que gostariam de ver por aí, mas que parece interessar a muitos poucos – mas, se você faz parte desses poucos que admiram uma obra que não esperaria ser bancada pelo governo, por editoras, por empresas ou instituições com interesses diferentes dos seus, sim, sim, este post sobre crowdfunding é também para você.
Simplificando, o crowdfunding é uma “vaquinha” virtual. Uma forma de financiamento coletivo, online, marcado pela utilização de plataformas próprias que facilitam o alcance de um montante financeiro necessário para realização de um projeto. É ele quem abre os braços para essas publicações. O apoio financeiro coletivo é carta velha, não é uma fórmula nunca antes imaginada para a concretização de planos artísticos – mas o financiamento coletivo, nos moldes atuais, é mais uma dessas maravilhas que a internet ajudou a espalhar com a graça de um incêndio e as facilidades de um bom e prático instrumento.
Pipocam projetos, pipocam colaboradores, pipocam plataformas. As diversas formas de pagamento também vêm como uma dádiva – boletos bancários, cartões de crédito, de débito, paypal, etc -, mas, não querendo atrapalhar os bois com a carroça, por que não começar a falar do pote de ouro no fim do arco-íris começando bem assim, pelo começo?
O que é, afinal?
Como já mencionei antes, o crowdfunding é uma espécie de vaquinha virtual. Pessoas doam para projetos que elas valorizam seja por seu conteúdo artístico, ético ou moral, ou por qualquer outra razão que lhes convenha – ajudar um amigo, incentivar um autor, fazer a caridade do dia. O princípio básico dessa forma de arrecadação é justamente contar com o aspecto “crowd” (multidão): várias pessoas, ainda que colaborando com valores pequenos, podem ser mais do que o suficiente para ajudar a alcançar o montante necessário. Poder contar diretamente com o apoio de amigos, familiares, desconhecidos das redes sociais e anônimos da internet é um alívio para quem recebe não de empresas e instituições que por algum motivo não estão interessados no seu trabalho ou que nem sonhariam em investir no que você produziu. Então o crowdfunding pode ser a gota que faltava para o seu projeto sair do papel.
Foi o que aconteceu com Idovino Cassol Júnior, o Idov Cassol, formado em filosofia e pós-graduado em Educação especial e gênero e diversidade na escola, que sempre desenhou – mas, como ele mesmo diz, só por hobby.
— Em um dado momento, beirando a desistência de “brincar de desenhar”, eu me reuni com meu amigo Paulo para decidirmos o que fazer da vida, com nossos personagens. Firmamos o acordo de que juntos seríamos a “Equipe Bugio” (isso viria a ser o nome de nossa editora – embora não tenhamos aberto uma editora oficialmente) e com isso publicaríamos nossas histórias e “resgataríamos” algum ser que estivesse na mesma situação que a gente, perdido com as artes precisando de empurrão. Com nossa primeira HQ pronta fomos atrás de patrocínio, mas acabou não agradando muito e o formato “super-herói” ganhou olhares tortos ao nosso projeto. Ouvimos que deveríamos nos adaptar ao padrão regional de produção de quadrinhos, para manter uma identidade curitibana, que super-heróis aqui teria resistência dos artistas locais a nos acolherem. Aí, então, partimos para o Catarse[1]. – Idov Cassol, co-autor da obra Armas Vivas & Extragenes, que já teve três edições lançadas graças a financiamentos coletivos.
Idov Cassol é, então, um exemplo vivo e simpático de autor que teve sua obra resgatada pelo apoio de colaboradores na internet. Conversei com ele para entender melhor a importância do Crowdfunding para os artistas independentes. Mas antes de entrar em mais detalhes sobre essa entrevista, o principal foco desse post, sinto que devo explicar melhor sobre essas campanhas. Isso é, se você caiu aqui sem muita noção do que eu estou falando e está querendo entender como funciona exatamente esse processo de financiamento coletivo – caso já conheça, pode pular o trechinho seguinte e partir de volta para entrevista com o Idov Cassol.
Então vamos lá, como funciona?
São várias as plataformas de financiamento disponíveis na internet. Elas se caracterizam basicamente por serem o “ambiente de arrecadação” ou a “sacola da vaquinha” – a vitrine onde os projetos são expostos para avaliação dos interessados em colaborar e também “o caixa”, o local que oferece vários meios de pagamento de forma segura e prática. As plataformas são importantes justamente por ajudarem a dar visibilidade e por facilitarem a colaboração dos interessados, que normalmente esperam por transparência, praticidade e segurança. Afinal, ainda que colaborem com apenas R$2, querem ter a certeza de podem usar seus cartões de crédito, débito, ‘paypals’, pagarem seus boletos bancários sem a dor de cabeça de serem tapeados, clonados e roubados. E podem fazer isso tudo de maneira virtual – sem terem a necessidade de deslocarem para colaborar, o que em si já poderia desestimular muito o processo.
Quem escolhe a plataforma é o autor do projeto. Existe um bocadinho interessante delas por aí (não se aperreie para sair procurando, vou disponibilizar uma lista com algumas delas ao final deste post, tenha calma). Na hora de escolher, vale a pena checar os fatores que envolvem a utilização dessa plataforma em específico. Para se sustentarem, normalmente as plataformas cobram taxas em cima do dinheiro adquirido nos projetos bem sucedidos; algumas oferecem serviços de divulgação; e muitas delas se consolidam por preferência dos usuários, antiguidade, etc. Não vou entrar muito nessas questões por que não é o objetivo desse texto.
Mas, prosseguindo, uma vez escolhida uma plataforma, existem basicamente dois modelos de “lançamento de um projeto”: as chamadas campanhas tudo ou nada ou campanhas flexíveis. As campanhas tudo ou nada se caracterizam por determinar que o dinheiro só irá para o projeto se alcançar a quantia almejada, a “meta” (essa quantia é determinada antes pelo próprio autor do projeto). Isso porque, existe um prazo para encerramento do projeto e, uma vez a meta sendo atingido ou ultrapassada, a plataforma irá encaminhar esse montante para o autor do projeto. Caso contrário, todo o dinheiro levantado é devolvido aos colaboradores (sim!). Já as campanhas flexíveis se caracterizam por possibilitarem a retirada, pelo autor do projeto, do dinheiro dos colaboradores – mesmo quando a campanha não atinge a meta estipulada.
Em ambas as campanhas geralmente existe a possibilidade de, além de estipular diferentes valores de contribuição (desde de R$ 1 a R$ 100, por exemplo), oferecer “recompensas” para os colaboradores. As recompensas variam de projeto para a projeto e normalmente depende exclusivamente da criatividade do autor do projeto e da disposição e compromisso que ele terá de realizar e cumprir com essas recompensas. E ah: não são obrigatórias. Mas normalmente elas tornam o projeto muito mais interessante e dão um ar da graça para quem colabora, já que essa pessoa não vai sair só com a sensação e a certeza de que ajudou com alguma coisa, mas também vai levar uma ‘’lembrancinha’’ pelo apoio.
Existe ainda uma terceira forma de arrecadação/campanha, cuja ideia é realizar uma doação contínua – normalmente mensal.
Mas voltemos ao Idov
Então, agora que você já compreendeu sobre que águas estamos avançando, vamos lembrar que o Idov Cassol e seu amigo Paulo haviam se decidido por entrar com um projeto no Catarse para lançar a HQ Armas Vivas & Extragenes.
— Fizemos um orçamento e a impressão para 300 exemplares ficou em torno de 2500 reais. Inventamos de pedir o dobro disso no Catarse, para pagar os brindes e sobrar um dinheiro pra gente. Daí não ia dar pra alcançar a meta, e tivemos que, nos instantes finais colocar dinheiro nosso lá. Já na segunda edição não colocamos grana sobrando pra gente. Não pegaríamos um centavo e ainda tiraríamos dinheiro do bolso para as recompensas. Da primeira edição até a terceira o público aumentou, novas curtidas na página e fizemos campanhas meio doidas, deixando a vergonha de lado, com vídeos fazendo paródias de algo pra chamar a atenção de quem não conhecia ainda agora estou desenhando a quarta edição e já programando como será esse “Catarse”. Durante isso fiz um livro infanto-juvenil e imprimi do bolso mesmo, sem catarse, mas foram só 30 exemplares.
Foi de uma “lufada só” igual a essa que você está lendo que o Idov me explicou toda essa história: planejaram mal no primeiro projeto, mas atingiram o mínimo necessário (o que foi uma surpresa para ele, conforme me ‘confidenciou’ depois). Tiraram o restante do bolso para pagar as recompensas e os envios (ele também me confidenciou que eles esqueceram de orçar o valor do envio dos brindes). Mas a coisa vingou de tal forma que não só decidirem dar à luz a uma segunda edição, como também a uma terceira e, sim, estão começando a planejar uma quarta edição de Armas Vivas & Extragenes. E o Idov Cassol, que antes de lançar o projeto estava prestes a decidir da ideia de “brincar de desenhar”, ainda bancou um livro infanto-juvenil por conta própria. Será que dá pra perceber onde quero chegar e por que isso tem tudo a ver com que falei no começo do texto, sobre a quem interessa esse post?
Se você ainda não está entendendo, eu conto mais. Perguntei ao Cassol como foi exatamente a sensação de trabalhar com o financiamento coletivo – mesmo com o sufoco inicial, de terem estipulado uma meta maior do que precisavam (que ainda assim deu pra cumprir, ainda que dependesse de uma contribuição dos próprios autores). Quis saber também quem foram os colaboradores dos projetos que lançaram.
— A primeira vez deu a sensação que nos metemos em algo grande demais pra gente. Eu, da dupla, sou o mais comunicativo, ainda assim tenho minhas restrições e assim atrapalhadamente fui convocando a galera por Facebook, Twitter e Instagram. Os colaboradores foram na grande maioria amigos. Ao longo das edições surgiram algumas empresas de pequeno porte de forma inesperada querendo ter a marca estampando a parte de trás da HQ. Isso por que na segunda edição a gente propôs uma propaganda mais interativa, que nós desenharíamos. Mas nesse caminho ganhamos bastante “nãos” também.
Idov e o amigo receberam muitos nãos – mas o número suficiente de “sims”. Justamente por que no meio de uma multidão é mais fácil encontrar a quantidade de sim que você precisa para tirar a sua obra do limbo, e, ainda que ela não pareça boa o suficiente para aqueles que “entendem do assunto”, alguém vai dar exatamente o valor que ela precisa. E é nisso que se sustenta o Crowdfunding.
Embora, é claro, o sistema de financiamento coletivo também não deixe de pedir do próprio autor do projeto um engajamento que leve as pessoas a acreditarem, como ele, que as ideias merecem o apoio. Mas nem por isso deixa de ser uma forma maravilhosamente válida de levar para frente a sua obra, seja ela qual for. E essas palavras nem são só minhas.
— Super recomendo essa forma de arrecadação. Tem muito projeto bom esquecido numa gaveta por conta da falta de saber o que fazer com velhos rabiscos. E não se desencorajam por comentários de artistas que já estão consolidados e primam por uma tal “identidade regional”, é só uma eugenia boçal deles, escrevam-desenhem o que quiserem. – Idov Cassol, co-autor da obra Armas Vivas & Extragenes, que já teve três edições lançadas graças a financiamentos coletivos.
Então, será que depois de tudo isso, você consegue perceber a importância do Crowdfunding para o lançamento de obras independentes? É você quem modela o trabalho. É você e quem colabora que garante a relevância da sua obra. Você é sua própria “curadoria” na busca por artes e cultura, por assim dizer. Não fica à mercê do interesse financeiro por trás da sua publicação, ou mesmo interesses ideológicos, sei lá. Você é livre para sugerir e as pessoas são livres para colaborar e colaborar com o valor que puderem. Aí, aquele trabalho que estava amarrotado na gaveta, apodrecendo no desktop ou ignorado em todo o seu potencial, sai do seu próprio limbo existencial e passar a servir a uma multidão de financiadores.
Crowdfunding na Laboralivros
Aproveitando a deixa, o Laboralivros realizou em 2018 seu primeiro projeto no catarse (com sucesso de 583% arrecadados além da meta). Se você não viu, saiba que estou falando do Jûsan’nin Isshû – treze poemas do Ogura Hyakunin Isshû, uma seleção de treze poemas da antologia poética Hyakunin Isshû (Cem Poemas por Cem Poetas), todas traduzidas pela graduanda de Letras Japonês e jogadora de karuta, Vladine Barros.
No mesmo ano, lançou o projeto Horror Oriental – contos populares fantásticos e sobrenaturais em parceria com o tradutor e editor Paulo Soriano, com organização de Lua Bueno Cyríaco. A coletânea traz contos do século III ao XIX traduzidos pela primeira vez para a língua portuguesa. A campanha atingiu 180% da meta em menos de 24 horas de publicação!
Depois disso, foram vários livros a mais, com mais de 20 campanhas de sucesso, graças ao financiamento coletivo.
Por fim, conforme prometido aproveite a lista abaixo para entrar em algumas plataformas e passar o olho nos projetos que estão sendo financiados. Veja as ideias, os valores, a quantidade de colaboradores, recompensas e tenha uma ideia ainda maior do potencial desse modelo de arrecadamento e também de como ele é capaz de incentivar a cultura e a arte independente.
Algumas plataformas de financiamento coletivo no Brasil
- Apoie-se
- Benfeitoria
- Catarse
- Ideia.me
- Vakinha
[1] O Catarse foi o primeiro site de financiamento coletivo a surgir no Brasil.