Entre cartas e mistérios, Yumeno Kyûsaku revela no livro “Shôjo jigoku, o inferno das garotas” o submundo das mulheres em uma sociedade em transformação
Cada cultura tem sua própria visão do Inferno. Para aqueles que cresceram em uma tradição cristã, a imagem é frequentemente moldada por chamas e enxofre, como descrito na obra-prima de Dante, “A Divina Comédia”. Para os budistas, o inferno é uma série de estados de espírito, representando diferentes estágios de desenvolvimento espiritual. Mas há também os infernos sociais, aqueles momentos e lugares em que a existência se torna um desafio árduo. É nesse último tipo de inferno que Kyûsaku Yumeno se concentra em “Shôjo Jigoku: O Inferno das Garotas”, publicado pela Laboralivros (Selo Urso).
Yumeno, apesar de ser um homem, capturou com sensibilidade a realidade do universo feminino no Japão dos anos 1930. Em “Shôjo Jigoku”, ele nos apresenta três contos: “Nada de mais”, “Revezamento de homicídios” e “A mulher de Marte”, além de alguns minicontos adicionais. O fio condutor de todos é o desafio das mulheres japonesas em encontrar seu lugar em uma sociedade em transformação. Através de um estilo epistolar — que remete aos clássicos góticos como “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, ou “Drácula”, de Bram Stoker — Yumeno dá vida a essas narrativas de forma única e envolvente.
A tradução preserva muitas das peculiaridades da língua japonesa, o que pode soar estranho para leitores não familiarizados, mas essa estranheza enriquece a experiência, permitindo quase “ouvir” o japonês por trás das palavras em português.
O primeiro conto, “Nada de mais”, abre com uma carta do Dr. Usuki Rihei ao Dr. Shirataka Hidemaro, relatando o suicídio da enfermeira Himekusa Yuriko. Yumeno nos joga diretamente no meio do drama, instigando o leitor a descobrir o que levou a personagem a esse trágico fim. Através dessa correspondência entre homens sobre uma mulher, o conto explora criticamente a visão masculina e o desprezo latente pelo feminino.
Em “Revezamento de homicídios”, o ponto de vista é da vítima, oferecendo uma perspectiva inusitada e tocante sobre a luta das mulheres para se adaptarem a novas realidades. O Japão dos anos 1930 estava em plena industrialização, e as mulheres eram pressionadas a entrar no mercado de trabalho, apesar das expectativas conservadoras que ainda pesavam sobre elas.
Finalmente, em “A Mulher de Marte”, Yumeno entrega uma narrativa sombria e complexa, que se desenrola através de recortes de jornal e cartas. O conto revela a profunda angústia de Amakawa Utae, uma mulher que, desde a infância, enfrenta o desprezo por sua aparência e encontra consolo apenas em sua amizade com Tonomiya Aiko. Esse relacionamento, tratado com delicadeza, é um dos pontos altos da obra, retratando um amor sincero entre duas pessoas.
“Shôjo Jigoku” não é uma leitura fácil, não por seu vocabulário, mas pela profundidade e intensidade dos temas que aborda. Contudo, a narrativa de Yumeno é irresistível, prendendo o leitor do início ao fim. A cada página, somos conduzidos a novos mistérios, terrores e personagens que nos encantam com suas histórias. É o tipo de livro que, uma vez começado, é difícil de largar — você vai se pegar dizendo “só mais uma página…” várias vezes.
O livro conta com a trilogia de contos “Inferno das garotas” e três minicontos escolhidos, a tradução é assinada por Felipe Medeiros e conta com prefácio de Maria do Carmo Oliveira (historiadora e membro da curadoria Assuntos do Japão da CEÁSIA-UFPE) que aborda ricamente sobre o papel da mulher na sociedade japonesa. Também, o posfácio de Felipe Augusto Trindade (sociólogo) que aborda um pouco sobre a contracultura do eroguro-nansensu. Ele pode ser encontrado no site da editora com desconto, ou na Amazon (também em formato de e-book).
SOBRE O AUTOR: Yumeno Kyûsaku foi um autor singular na literatura japonesa, especialmente quando comparado a seus contemporâneos. Enquanto escritores como Jun’ichirô Tanizaki, Ryûnosuke Akutagawa e Yasunari Kawabata exploravam temas estéticos, psicológicos e existenciais com um estilo mais refinado e introspectivo da vida moderna, Yumeno se destacava por sua abordagem mais experimental, utilizando o grotesco, o surreal e o macabro para expor as realidades sombrias da sociedade japonesa, especialmente em relação ao papel das mulheres. Sua obra é uma combinação única de crítica social e narrativa inovadora, que o coloca em um lugar à parte na literatura japonesa do período.
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