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As estações no Japão

Livro de contos fantásticos com foco na natureza e suas estações

São poucos os povos que possuem uma conexão com a natureza tão característica quanto a do povo japonês. Nativos de uma ilha vulcânica, expostos ao temperamento imprevisível do oceano Pacífico (que de pacífico tem só o nome), os japoneses vivenciam, desde tempos imemoriais, espetáculos naturais que variam entre indescritível beleza e terrível violência. Isso torna o relacionamento dos japoneses com a natureza à sua volta único, refletindo-se em sua literatura, tradições e costumes. E isso é perfeitamente exemplificado no livro que abordamos hoje: Contos Fantásticos Japoneses: As Quatro Estações e a Natureza, publicado pela Laboralivros (selo BuruRu).

A obra traz uma coletânea de contos japoneses centrados ao redor do tema titular, as estações do ano e a natureza. As narrativas são divididas em cinco grupos, percorrendo o ciclo anual da primavera ao inverno e finalizando com uma seleção de contos que retratam a natureza e seus fenômenos de uma maneira mais geral. Uma característica interessante de ressaltar é que a seleção dos contos foi feita também pensando em trazer contos pouco conhecidos (embora tenha alguns clássicos).

Os contos com a temática primaveril trazem muitas referências às flores que abundam nessa estação do ano, desabrochando pela primeira vez após o longo inverno e inundando o país com suas cores e aromas. Em especial, destaco aqui o conto “As Cerejeiras de Fevereiro”, que conta a história de um homem que havia passado toda sua vida admirando as flores de uma grande árvore de cerejeira que existia no vale onde morava. Todos os anos, o homem agradecia à árvore por agraciá-los com suas belas flores e enterrava as pétalas caídas ao pé da árvore. Com o passar dos anos, o homem foi ficando mais velho e, eventualmente, chegou próximo da morte. Seu último desejo era ver a cerejeira florescendo novamente. Entretanto, era fevereiro, ainda era inverno, e as flores estavam longe de desabrochar. O neto do homem se compadeceu de seu avô e passou a noite inteira pedindo à árvore que mostrasse suas flores para o velho uma última vez. Na manhã seguinte, milagrosamente, a árvore havia desabrochado, e o avô pôde falecer em paz após ver o espetáculo que tanto havia apreciado.

Contos como esse demonstram a reverência e a profunda gratidão sentida pelos japoneses pelas dádivas da natureza, e mostram também como a natureza pode retribuir essa gratidão quando é tratada com respeito.

O verão, por outro lado, é muito quente e úmido, tornando uma época do ano que, em outras culturas, é mais marcada pela alegria e movimento, em uma época mais introspectiva e até melancólica, visto que muitos dos moradores do país têm que ficar em casa se protegendo do forte calor. Não que não haja celebração e festividade, afinal, é durante o verão que ocorrem os famosos festivais japoneses, mas a grande maioria é em homenagem aos espíritos, pois acredita-se que seja durante o verão que os espíritos dos mortos visitam a terra novamente. Devido a isso, é comum a contação de histórias de fantasmas nessa época do ano, como exemplificado nos contos “O Segredo da Lagoa Iidamachi”, “Vaga-lumes Humanos” e “A Procissão dos Fantasmas”.

No outono é quando a temperatura começa a ficar mais amena, e as folhas das árvores passam a mudar do verde para o amarelo, laranja e vermelho. A combinação da temperatura agradável com as cores das folhas e as noites claras de outono contribuem para uma estação aconchegante, na qual é comum fazer caminhadas ao entardecer ou observar a lua e as estrelas. Esse clima outonal e as reflexões posteriores aos festivais em honra aos mortos do verão fazem com que as pessoas desejem estar mais próximas umas das outras, aproveitando o tempo com os amigos e preparando-se para o vindouro inverno. Esse sentimento é exemplificado, de certa forma, no conto “O Amante da Primavera e o Amante do Outono”. Nessa narrativa, os deuses do outono e da primavera entram em uma competição para conquistar o coração da mais bela dama do Japão, que estava sendo cortejada por 80 pretendentes. A bela rejeita o kami do outono, e este, ao perceber que seu irmão, o kami da primavera, buscava cortejar também a dama, fez uma aposta de um barril de saquê caso o irmão conseguisse a mão da dama.

Pois o kami da primavera recorreu, então, à sua celestial mãe, pedindo ajuda para conquistar a tão desejada dama. Sua divina mãe lhe teceu trajes de glicínia, flor que tradicionalmente representa juventude, amor e perseverança. Ao ver as flores de glicínia desabrochando, a donzela se apaixonou pelo kami e aceitou casar-se com ele. Entretanto, o kami da primavera passou a temer retaliações de seu irmão, que havia muito se enfurecido ao ser rejeitado pela dama. Solicitando novamente à sua mãe que o ajudasse, ela pegou uma bengala de bambu oca, colocou sal e pedras na cavidade, a enrolou com folhas e colocou por cima do fogo, dizendo: “As folhas verdes murcham e morrem, e assim você deve fazer, meu filho mais velho, kami do outono. A pedra afunda no mar, assim como você deve afundar”. Essa passagem alude a como o outono representa a transição entre as paisagens verdejantes e alegres da primavera e verão para as paisagens tristes e sem vida do severo e nevoso inverno.

E como é severo o inverno japonês! Com uma média de -4°C, e mínimas de até -25°C, diversos lugares do arquipélago ficam cobertos de gelo por boa parte dos meses invernais. Portanto, não é de se surpreender que a neve e o frio sejam características constantes dos contos associados a essa estação, incluindo elementos fantásticos como mulheres feitas de neve ou gelo e vovós fantasmagóricas que roubam o rosto das mulheres que aceitam usar seu pó de arroz como maquiagem. Vale ressaltar que é aqui que um dos contos mais antigos está: o primeiro registro da criatura sobrenatural (yôkai) chamada Yuki Onna (ou mulher de neve), feito por Inô Sôgi no século 14.

Por último, mas não menos importante, temos os contos com uma temática mais geral da natureza. Entre esses contos, encontramos alguns clássicos inabaláveis da literatura japonesa, como o conto de Urashima Taro, um dos mais antigos contos japoneses, datando do século VIII.

Cada um dos contos dessa obra traz tantos detalhes e momentos fascinantes que é difícil não falar em mais detalhes de todos. Entretanto, acho que basta dizer que esse livro é uma adição perfeita à biblioteca de todos aqueles que se interessam por esse país tão rico em histórias e tradições, além de ser também um excelente ponto de partida para aqueles que não o conhecem ainda, mas nutrem o desejo de conhecer.

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