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Mukashi banashi, os “contos de fada” do Japão

mukashi, mukashi, aru tokoro ni… sim, no Japão muitos contos começam com o familiar “Há muito, muito tempo” ou “Era uma vez…”

Os mukashi banashi (“Narrativas antigas”) japoneses, da mesma forma que os skáski russos, os fairy tales ingleses, os Märchen alemães, e outros tantos do gênero, consistem em narrativas que fluem no tempo, no espaço e no imaginário dos homens de todos os tempos, de todas as culturas. Narrativas que, abrigadas na essência do ser humano, desde os tempos mais remotos, marcavam o ritmo da vida: depois do plantio e da estação das colheitas, as histórias desenrolavam-se em volta do fogo, durante o “repouso” do inverno, à espera do renovar da existência. Fechava-se um ciclo para iniciar-se o vindouro.

Urashima Tarô e a princesa – por Matsuki Heikichi (1899). Este mukashi banashi que leva o nome do protagonista é um dos contos mais famosos do Japão

Ao sabor do tempo, aquelas narrativas contadas nas frias noites de inverno foram se modificando, tal qual o homem que evoluiu no curso da história. No entanto, mantêm-se vivas nas mensagens, latentes em suas palavras, no recôndito do sentimento humano.

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Momotarô, o menino-pêssego, também é um mukashi banashi muito famoso e apesar de ser famosa a versão infantil, trata-se de uma história até bem sangrenta.

Pode-se dizer que os mukashi banashi japoneses consistem em uma forma literária que, comparada à literatura ocidental compreende, em âmbito geral, contos de caráter maravilhoso, bem como aqueles que se aproximam das fábulas, mitos e lendas. Considerando, assim, é possível dizer que, de maneira semelhante à maioria dos povos, tais contos faziam parte de um acervo narrativo destinado a adultos; entretanto, com a tradição oral e o decorrer das gerações, sofreram modificações em sua estrutura, fato que veio acarretar, em diversos deles, um direcionamento para o campo infantil.

Entre as famílias de descendentes é comum que os imigrantes passassem a seus filhos nascidos em terras distantes as histórias que ouviram de seus pais, e assim certamente seguiu para as gerações seguintes, como relata a pesquisadora e tradutora Márcia Namekata:

“Desde a primeira infância tais contos fizeram-se presentes na minha vida, através das palavras de minha avó e de minha mãe, ou ainda através das músicas cantadas por meu pai, tanto nos momentos de brincadeira como nos que antecediam o sono.”

Ana Helena Rodrigues no artigo A psicanálise nos contos de fada, destaca que:

As versões modernas dos contos de fadas, compiladas pelos irmãos Grimm, integram a pedagogia iluminista do século XIX e são dependentes da criação da família nuclear e da infância tal como a conhecemos hoje. Segundo Maria Rita Kehl, a infantilização das narrativas tradicionais, transformadas nos atuais “contos de fadas”, é concomitante à criação de um mundo próprio da criança e ao reconhecimento de uma “psicologia infantil”, da qual mais tarde a psicanálise viria a se destacar radicalmente.

Yuki-Onna para o Hyakkai-Zukan de Sawaki Suushi (1737). Esse yôkai foi registrado pela primeira vez nos escritos de um monge Sogi Shokoku monogatari (1333 – 1573)

No caso do mukashi banashi japonês – apesar da diferença estrutural e vários outros aspectos diferirem dos contos ocidentais -, a ligação com o aspecto infantil parece que se dá por um viés semelhante ao das histórias ocidentais. Apesar do isolamento com relação ao mundo ocidental, sua reabertura acontece justamente na segunda metade do século XIX, e inevitavelmente sofrem influências da tecnologia e pensamento ocidental. Com o passar do tempo e a mudança nos papéis e organizações sociais, essas histórias que antes seriam uma forma de lidar com situações psicológicas e sociais (afinal, trata-se de uma forma de transmitir comportamentos) perdem lugar para métodos científicos, que buscam investigar e assegurar a veracidade das coisas.

Uma vez que as narrativas tradicionais – em específico estas que tratamos, com elementos fantásticos e maravilhosos – são decididamente não reais no nosso mundo palpável, impossíveis de serem verificadas cientificamente como fatos, adquirem o aspecto de crença ou mito. Assim como os Grimm ou Afanasief, ou mesmo La Fontaine ao resgatar as fábulas de Esopo, ressignificam o papel social do conto maravilhoso, ou contos de fadas, como comenta Tarik Alexandre:

É um movimento gradativo em que o uso das fábulas como narrativas moralizantes deixam de ser ensinamentos para adultos para se tornarem objetos pedagógicos. Não se trata de falar da “verdade”, mas sim de ser um tipo de metáfora educativa.

Sendo assim, quando se procura por mukashi banashi que não tenham tantos aspectos infantis – seja em seu formato original ou mesmo um produto baseado como livros ou filmes -, o que mais se encontra são histórias que falam sobre fantasmas ou seres assustadores, muitas vezes ligados à ensinamentos ou lendas budistas. Mas apesar de serem contos populares e estarem classificados como mukashi banashi, eles não tem o aspecto da história de fantasia, construídas em um enredo mais elaborado – a grosso modo com começo, meio e fim.

Dessa forma, como dito anteriormente, as histórias mais contadas acabavam sendo as destinadas à crianças (originalmente, elas poderiam não ser destinadas ao público infantil, inclusive como alguns contos de fada também não o eram, mas a tendência foi a de seguir cada vez mais para a infantilização de algumas dessas histórias), e por isso a variedade conhecida no Brasil não é tão grande, além é claro, de ter sido durante algum tempo um tipo de material especifico para a comunidade Nikkei.

Atualmente, entretanto, a curiosidade e até mesmo gosto pela cultura japonesa faz possível a difusão dos contos populares que lá são chamados mukashi banashi, e hoje em dia conseguimos ter acesso à narrativas tão fantásticas e interessantes quanto o que conhecemos comumente por “contos de fada”, que nos aproxima de um mundo rodeado de possibilidades maravilhosas.

Podemos dizer que, se os belos longa metragens de animação da Disney fizeram com que gerações sonhassem com as incríveis princesas, bruxas, fadas, príncipes, histórias de amor e valentia baseadas nos registros de contos populares ocidentais, o mais recente Studio Ghibli, responsável pela animação A Viagem de Chihiro e O Conto da Princesa Kaguya trouxe ao ocidente essa mesma magia dos personagens e situações fantásticas com a característica visão japonesa, tão presente em seus mukashi banashi – no caso do Conto da Princesa Kaguya, até literalmente -, sendo a maior delas, sem sombra de dúvidas o não maniqueísmo dos personagens. 

trailer do filme “O conto da princesa Kaguya”, do studio Ghibli

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A viagem de Chihiro – No final, apesar de existir uma resolução feliz, o casal não fica junto, um tema recorrente em vários mukashi banashi.

Enquanto nos contos ocidentais vemos papéis bem definidos entre bem e mal, nos contos japoneses nem sempre isso é tão claro, e vários personagens do filme podem apresentar essa característica típica das histórias japonesas.

Um outro ponto que merece ser destacado é que, um personagem dificilmente termina a história vivendo fora de seu lugar de origem, como um mundo mágico ou algo assim. Da mesma forma, quando um casal é feito por seres diferentes, eles dificilmente ficarão juntos. Está aí um mote que permeia muitas histórias de romance japonesas, mesmo na contemporaneidade. Este é um dos grandes destaques dos contos recolhidos pela pesquisadora e tradutora Márcia Namekata, que formaram sua tese intitulada “Os mukashi banashi da literatura japonesa: uma análise do feminino e do casamento entre seres diferentes no contexto dos contos do Japão antigo.”

Mas para trazer à vocês um pouco mais, fizemos a lista abaixo com alguns dos mukashi banashi mais famosos, que conseguiram atravessar o tempo, espaço e linguagem para chegar até nosso conhecimento.

É possível que os fãs de animação ou cinema japoneses possam perceber algumas influências. E para os que estão tendo contato pela primeira vez com este formato, recomendamos que procurem conhecer algumas narrativas, elas são tão encantadoras quanto as clássicas já tão difundidas, e certamente podem servir de influência para muitas histórias futuras, ou mesmo como uma referência cultural japonesa.

É comum ouvir daqueles que estão tendo seus primeiros contatos com a literatura japonesa – mesmo a moderna, como Haruki Murakami, por exemplo -, sobre os estranhamentos não só comportamentais, mas de uma estrutura básica, uma forma de contar histórias que realmente marca, um exemplo disso é o mote “mas a história não tem final” ou “eu fiquei sem entender como terminava para o personagem X”. Como falamos anteriormente, nós estamos acostumados a um tipo de narrativa – vinda dessa tradição oral – com uma resolução clara, e geralmente com finais felizes, entretanto, ao comparar com várias narrativas japonesas vemos que não existe um final feliz e as vezes, a resolução parece insatisfatória ou de aspecto inacabado.

Acreditamos que algumas respostas à essas questões podem ser encontradas aqui neste texto e na leitura dos contos sugeridos.


Referências

NAMEKATA, Márcia. Os mukashi banashi da literatura japonesa: uma análise do feminino e do casamento entre seres diferentes no contexto dos contos do Japão antigo. 2011, São Paulo. Tese de Doutorado.

RODRIGUES, Ana Helena. A psicanálise nos contos de fada. blog Ciências da linguagem, da Escola de Comunicações e Artes da USP

DAVISSON, Zach. Yuki Onna – the snow woman. site: Hyakumonogatari kaidankai. (o registro de Ino Sôgi pode ser encontrado em português no livro “Contos fantásticos japoneses: as quatro estações e a natureza” (BuruRu, 2024)


(1) Comentário

  1. […] seres diferentes, e representa um subgênero dos contos tradicionais folclóricos japoneses (os mukashi banashi) no qual um homem humano se casa com uma mulher de origem fantástica, seja ela um animal que se […]

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